Imagine um título de dívida como um grande bolo. Tradicionalmente, esse bolo era vendido inteiro — com todas as camadas e coberturas incluídas. Mas e se você pudesse separar as camadas (o valor principal) das coberturas (os juros) e vender cada parte separadamente, atendendo diferentes gostos e objetivos?
Esse é o espírito por trás das STRIPS (Separate Trading of Registered Interest and Principal of Securities), um sofisticado mecanismo de negociação de títulos adotado nos EUA. E agora, com a Resolução CVM nº 226/2023, o mercado brasileiro finalmente ganha os instrumentos regulatórios para viabilizar algo muito parecido por aqui.
O que muda com a Resolução 226/2023?
Publicada em março de 2025, a Resolução 226 tem como objetivo simplificar, modernizar e flexibilizar a emissão de debêntures no Brasil, funcionando como uma continuação da Resolução CVM 160/2022, que reformulou o regime de ofertas públicas.
Se antes o processo de emissão de debêntures era carregado de exigências burocráticas e desatualizadas, agora ele se torna mais ágil, digital e compatível com as melhores práticas internacionais.
Aqui estão os principais avanços:
1. Fim do registro em Junta Comercial
Companhias abertas não precisam mais arquivar a escritura de emissão em Junta Comercial. Basta o envio eletrônico via sistema ENET da CVM — uma mudança que elimina custos, acelera processos e desburocratiza a estruturação de dívidas.
2. Aprovação simplificada
A emissão de debêntures não conversíveis pode ser aprovada pela própria diretoria da empresa, sem necessidade de assembleia de acionistas ou deliberação do conselho. Isso reduz o tempo de decisão e aumenta a flexibilidade operacional.
3. Transparência padronizada
Todos os atos societários relacionados à emissão devem ser enviados à CVM em até 7 dias úteis, e divulgados simultaneamente no site do emissor e da entidade de negociação — mesmo que a oferta não seja pública. Isso garante acesso tempestivo à informação e simetria entre os participantes.
4. Reconhecimento do desmembramento de debêntures
E aqui está o ponto central desta edição: a CVM reconhece expressamente a possibilidade de “splitar” debêntures, ou seja, negociar separadamente o valor nominal (principal), os juros e demais direitos do título.
Esse é o primeiro passo concreto para se implementar, no Brasil, mecanismos equivalentes às STRIPS.
Mas o que são STRIPS, afinal?
As STRIPS são instrumentos financeiros criados a partir do “desmembramento” de um título de dívida tradicional em componentes independentes:
- Os cupons de juros periódicos viram títulos autônomos (C-Strips);
- O valor principal (a ser pago no vencimento) vira outro título separado (P-Strip).
Cada componente passa a ter vida própria — com datas de vencimento específicas, preços distintos e perfis de risco e retorno diferentes.
Nos EUA, STRIPS são utilizadas principalmente para:
- Eliminar o risco de reinvestimento (já que não há pagamentos intermediários);
- Aumentar a sensibilidade à taxa de juros (duration mais longa);
- Planejamento financeiro de longo prazo (casamentos, aposentadorias, vencimentos sincronizados com passivos).
No Brasil, até então, não havia previsão expressa para essa prática. A Resolução CVM 226 muda isso.
Por que o “strip” de debêntures é relevante?
A permissão para o desmembramento cria possibilidades de estruturação e diversificação, tanto para quem emite quanto para quem investe:
Para os emissores:
- Redução no custo de captação: ao atrair investidores específicos para cada componente (juros ou principal), a empresa pode montar uma estrutura de dívida mais eficiente.
- Maior flexibilidade no desenho da oferta: o emissor pode customizar a remuneração, prazos e liquidez conforme o perfil dos investidores-alvo.
Para os investidores:
- Personalização de estratégias: fundos de pensão podem comprar apenas o fluxo de juros; investidores de longo prazo, apenas o principal.
- Gestão de duration e volatilidade: gestores podem montar portfólios mais sensíveis ou mais defensivos conforme o ciclo de juros.
- Aumento de liquidez no secundário: com títulos mais “modulados”, o mercado tende a ter mais negociação por partes, o que melhora a precificação e a profundidade de mercado.
E os desafios?
Apesar do avanço regulatório, a adoção prática de debêntures desmembradas exigirá:
- Infraestrutura operacional nas entidades de registro e custódia;
- Ajustes nos sistemas de negociação e precificação das plataformas de mercado;
- Educação dos investidores institucionais sobre as novas possibilidades de alocação.
Mas como já ocorreu com a evolução dos FIDCs e dos CRIs, esse processo tende a ganhar tração à medida que os primeiros emissores mais sofisticados testarem os modelos e validarem o benefício econômico de operações “stripadas”.
Um mercado mais inteligente — e mais eficiente
A Resolução 226 não apenas remove barreiras burocráticas, mas também desbloqueia inovação estrutural.
É como dar aos emissores brasileiros uma nova paleta de cores para pintar seus instrumentos de dívida — onde antes só existiam as tintas básicas.
E mais importante: alinha o Brasil ao que há de mais moderno nos mercados globais.
Assim como os FIDCs criaram um ecossistema de securitização robusto a partir da transformação de recebíveis, a possibilidade de “stripar” debêntures pode catalisar a próxima onda de sofisticação no mercado de renda fixa brasileiro.
Conclusão: o bolo foi desconstruído — e isso é ótimo
A metáfora do bolo ajuda a entender a revolução silenciosa trazida pela Resolução 226: agora, podemos vender a cobertura para quem quer doce e a massa para quem busca sustância.
O resultado? Mais eficiência alocativa, mais liquidez, menor custo de capital e mais alternativas reais para o investidor institucional.
É a engenharia financeira sendo usada com responsabilidade — e não como arma de destruição em massa.
Se bem implementadas, as “STRIPS brasileiras” podem inaugurar uma nova fase no mercado de dívida: mais transparente, mais flexível, mais líquido — e mais útil para a economia real.