Navegando pelo paradoxo do crédito imobiliário
O primeiro semestre de 2025 esculpiu no mercado de Certificados de Recebíveis Imobiliários (CRI) um cenário de contrastes marcantes. Observá-lo foi como testemunhar um rio cujo leito principal se estreita, enquanto suas águas represadas circulam com uma força inédita em um grande lago adjacente. De um lado, o mercado primário, fonte de novos ativos, registrou uma retração de 32,5% nas emissões, um reflexo direto de um necessário e aguardado aperto regulatório. Do outro, o mercado secundário ferveu, atingindo volumes recordes de negociação, impulsionado pela busca incessante dos investidores por retornos atrativos e isentos de imposto em um ambiente de Selic elevada.
Essa dualidade não é um sintoma de fraqueza, mas de amadurecimento. Ela revela um mercado em plena recalibração, forçado a reencontrar sua essência. Por trás dos números, desenha-se uma nova geografia do crédito imobiliário, onde a qualidade do lastro se sobrepõe ao volume e a estratégia de alocação se torna mais sofisticada. Esta análise mergulha nessa dinâmica, decodificando a fissura entre os mercados primário e secundário, a batalha estratégica entre os indexadores CDI e IPCA, e a força inabalável do setor residencial como pilar central de um mercado em transformação.
O Grande paradoxo: contração na origem, euforia na negociação
A queda de 32,5% nas novas emissões de CRIs no primeiro semestre, quando comparada ao mesmo período do ano anterior, tem uma causa clara: as novas diretrizes do Conselho Monetário Nacional (CMN). A intervenção regulatória mirou em uma distorção que ganhava corpo no mercado: o uso do instrumento por empresas sem vínculo direto com o setor imobiliário, que se aproveitavam do benefício fiscal para otimizar suas estruturas de capital. Ao restringir as regras de lastro, o CMN agiu para reconectar o CRI ao seu propósito fundamental: financiar a cadeia imobiliária, da construção à aquisição de imóveis.
O resultado imediato foi um freio na “indústria da emissão”. Projetos que não se enquadravam na nova e mais estrita definição de crédito imobiliário foram engavetados, e o mercado como um todo entrou em um período de adaptação. Contudo, seria um erro interpretar essa contração como desinteresse pelo ativo. A prova reside na performance do mercado secundário.
Com um volume recorde de negociações, o secundário demonstrou a profunda demanda represada por CRIs de boa qualidade. Em um cenário com uma taxa Selic orbitando os 15%, a isenção de imposto de renda se torna um diferencial poderoso. Um rendimento que já é robusto em sua forma bruta ganha uma atratividade exponencial quando líquido de impostos, superando com folga alternativas de renda fixa tradicionais. O que os investidores sinalizaram foi: “Queremos o ativo, confiamos nos seus fundamentos, mas aguardamos novas emissões que respeitem a integridade e a qualidade que a nova regulação exige”.
A batalha dos indexadores: o dilema entre ganho absoluto e ganho real
A análise dos indexadores escolhidos pelos investidores revela uma camada ainda mais sofisticada de estratégia. O mercado se dividiu em duas grandes teses de alocação, ambas perfeitamente racionais.
De um lado, o CDI foi o campeão de volume, respondendo por 56% do total financeiro. Esta é a aposta no ganho absoluto e na previsibilidade. Com a Selic em patamares elevados, um CRI atrelado ao CDI entrega um retorno nominal massivo. É a escolha do investidor que acredita na manutenção dos juros altos no curto a médio prazo e busca maximizar o “carry” de sua carteira. O volume expressivo sugere que grandes alocadores, como fundos institucionais, priorizaram essa estratégia para gerar alfa de forma consistente.
Do outro lado, o IPCA dominou em quantidade de operações, com 52% do total. Esta é a tese da proteção patrimonial. O investidor que opta pelo IPCA está mais preocupado com a inflação resiliente e busca, acima de tudo, garantir um ganho real — um retorno que efetivamente aumente seu poder de compra. A liderança em número de transações indica que essa estratégia é mais pulverizada, adotada por uma base mais ampla de investidores, incluindo pessoas físicas e gestores que priorizam a preservação de capital no longo prazo.
Essa divisão não é um cabo de guerra, mas a materialização de um mercado maduro, onde diferentes perfis de risco e horizontes de tempo coexistem. É a escolha entre a velocidade máxima em terreno plano (CDI) e a garantia de avanço constante contra um vento contrário (IPCA).
O alicerce do mercado: a força inabalável do setor residencial
Em meio à turbulência regulatória e ao dilema dos indexadores, um segmento provou ser a rocha sobre a qual o mercado de CRIs se apoia: o setor residencial. Abrangendo todo o espectro, desde projetos do programa Minha Casa, Minha Vida até empreendimentos de alto padrão, foi este o setor que protagonizou o volume de novas operações.
Essa resiliência não é acidental. Ela se ancora na natureza fundamental da demanda por moradia, um déficit habitacional histórico e dinâmicas demográficas que sustentam o setor a longo prazo. Enquanto operações de lastros mais exóticos ou corporativos foram diretamente impactadas pelas novas regras do CMN, o financiamento à produção e aquisição de imóveis residenciais representa a essência do crédito imobiliário.
A força desse segmento funciona como uma âncora de estabilidade. Ela garante um fluxo contínuo de operações de alta qualidade e com risco pulverizado, essenciais para a saúde e a credibilidade do mercado. Para os emissores e investidores, o setor residencial é a prova de que, mesmo em um ambiente de maior rigor, o mercado de CRIs possui um motor potente e resiliente, capaz de sustentar o crescimento futuro.
Conclusão: um mercado mais forte e mais criterioso
O cenário do mercado de CRIs no primeiro semestre de 2025 não é de crise, mas de uma profunda e necessária maturação. A contração primária é o efeito colateral de uma faxina regulatória que trará benefícios duradouros, aumentando a transparência e a qualidade dos ativos. A pujança secundária e a resiliência do setor residencial confirmam que a demanda por este extraordinário instrumento de investimento permanece intacta. A divisão estratégica entre CDI e IPCA, por sua vez, reflete a sofisticação de um investidor que agora joga um jogo mais complexo e bem pensado. O mercado de CRIs está se tornando mais enxuto, mais forte e, fundamentalmente, mais alinhado ao seu propósito: construir o futuro do setor imobiliário brasileiro.