Nos últimos 18 meses, o Conselho Monetário Nacional (CMN) promoveu uma mudança silenciosa, mas profunda, no arcabouço regulatório do mercado de securitização brasileiro. As Resoluções nº 5.118, nº 5.121 e nº 5.212 – publicadas entre fevereiro de 2024 e maio de 2025 – não apenas redesenham as regras para emissão de CRIs, CRAs, LCIs e LCAs, como também revelam uma preocupação clara: resgatar a essência setorial desses instrumentos, garantindo que sirva efetivamente ao financiamento do mercado imobiliário e do agronegócio.
Mas será que restringir é proteger? Ou sufocamos a evolução de um mercado ainda em construção?
O fim da flexibilidade: As três resoluções do CMN
Resolução CMN nº 5.118 (fevereiro de 2024)
A primeira pancada veio com a Resolução 5.118, que proibiu o uso de lastro em direitos creditórios originados por empresas cuja atividade principal não estivesse diretamente ligada ao setor imobiliário (CRI) ou ao agronegócio (CRA). A medida visava impedir distorções no uso desses instrumentos, como operações realizadas por companhias abertas dos setores de saúde ou alimentação rápida – casos emblemáticos de Rede D’Or e Zamp, respectivamente.
Adicionalmente, proibiu-se:
- O uso de operações entre partes relacionadas (posteriormente substituído pelo conceito de conglomerado prudencial).
- O financiamento retroativo de despesas – prática onde o empreendedor custeava inicialmente os gastos e depois usava a securitização para ressarcimento.
Impacto imediato? Uma corrida para emissão: +208% em janeiro de 2024, último mês antes da vigência, seguida de uma queda abrupta nas emissões em fevereiro.
Resolução CMN nº 5.121 (março de 2024)
Percebendo os excessos e as incertezas jurídicas criadas, o CMN recuou parcialmente com a Resolução 5.121, trazendo:
- Flexibilização na definição do lastro: contratos comerciais como duplicatas e aluguéis passaram a ser aceitos mesmo que os devedores fossem companhias abertas.
- Redefinição do conceito de “partes relacionadas”, restringindo operações apenas dentro de conglomerados prudenciais.
Com isso, buscou-se proteger o propósito setorial das emissões sem bloquear a atuação de securitizadoras especializadas, que dependem de estruturas flexíveis para operar.
Resolução CMN nº 5.212 (maio de 2025)
A mais recente resolução, no entanto, marcou um endurecimento regulatório significativo:
- As restrições foram ampliadas, passando a alcançar também companhias fechadas e pessoas jurídicas que não atuem de forma relevante no agronegócio ou setor imobiliário.
- O critério passa a se aplicar não apenas ao emissor do título, mas também a qualquer:
- Devedor,
- Codevedor,
- Ou garantidor da operação.
Resultado prático: mesmo empresas privadas, com operação indireta no setor, ficam agora impedidas de estruturar CRIs e CRAs. O benefício fiscal – notadamente a isenção de IR para investidores – fica reservado apenas às emissões puramente setoriais.
Agentes do mercado classificaram a medida como um “retrocesso gigantesco“, acusando o CMN de comprometer a liquidez e elevar o custo de capital para empresas fora dos setores “puros”, em um momento de ciclo de aperto monetário e crédito caro.
O caso específico da Resolução CMN nº 5.118
A Resolução 5.118 trouxe um ponto técnico importante: a vedação explícita à prática de reembolso via securitização. Ou seja, o empreendedor não poderá mais financiar despesas com recursos próprios e depois estruturar uma emissão de CRI e CRA para resgatá-las.
A lógica? Impedir a deturpação do instrumento como mecanismo de reembolso indireto, reforçando o caráter prospectivo e de funding direto das operações.
Um mercado mais seguro — ou mais restrito?
Com as novas regras, o CMN tenta:
- Evitar o uso oportunístico das estruturas de securitização.
- Direcionar os benefícios fiscais para as finalidades originais das isenções.
- Reforçar a integridade setorial do mercado de crédito.
No entanto, o outro lado da moeda preocupa:
- Restrição do pool de emissores, concentrando o mercado em poucas grandes companhias.
- Elevação do custo de funding, em um momento macroeconômico desafiador.
- Sufocamento da inovação em estruturas híbridas, especialmente no middle market.
Considerações Estratégicas
Estas medidas trazem à tona um dilema regulatório clássico: garantir a segurança e o direcionamento dos instrumentos financeiros sem tolher sua evolução e capilaridade.
No curto prazo, é provável que vejamos:
- Queda no volume de emissões de CRIs, CRAs e CDCAs.
- Redirecionamento das empresas para outros instrumentos — FIDCs, debêntures, notas comerciais.
- Possível pressão para revisões regulatórias ou criação de produtos alternativos.
Mas no longo prazo, o sucesso da nova arquitetura dependerá de um equilíbrio delicado entre:
- Preservar o propósito fiscal e setorial da securitização.
- Evitar que o excesso regulatório torne o Brasil um mercado secundário para capital estruturado.
A lição que fica é clara: a regulação precisa proteger — não paralisar.